Recomeço/Sinceridade
- Clara Godoy
- 10 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
Hoje, atravessei a rua com um livro na mão. Comprei ele em uma pequena livraria, na rua da sua casa. E não pude deixar de pensar em você. Talvez não ter te encontrado, mesmo tendo andando na sua rua, mesmo tendo comprado uma água na padaria da sua esquina e passeado no seu bairro, tenha sido a melhor parte. Por que talvez, se eu tivesse te encontrado, não sentiria como se finalmente, esse peso tivesse saído das minhas costas. Das palavras que deixamos de falar e como no final, a sua despedida doeu mais e foi mais forte que outras despedidas.
Agora, mais do que nunca, me sinto livre de verdade. Não só livre, como leve. E a partir desse momento, desse dia, uma pessoa que consegue voltar a se amar.
O processo de se amar começa sempre a contragosto. Você encolhe a barriga quando engorda demais, compra um creme para solucionar suas estrias, se ressente com o aparecimento das suas celulites. Por mais que o relevo da pele seja uma geografia sutil e única do seu próprio corpo, aos poucos ela vira odiada. E por mais que os livros digam que isso é um fator comum da sociedade capitalista e dos padrões de beleza mantido pelo patriarcado, não é nada disso. É que sua "amiga" perguntou no outro dia se você ganhou peso, sorrindo nervosamente, dizendo que não era nada. Ou sua mãe, que viu uma roupa sua sem querer rasgar, e brigou com você por comprar o tamanho errado. Ou seu namorado, que tem comentado, suavemente, de que você ganhou alguns quilinhos nesses últimos meses (embora a barriga dele também tenha crescido).
No meu caso, foi o completo oposto. Minha barriga era tão seca, e meu corpo tão magro, que eu me sentia desconfortável. Eu gostaria de ter mais peso, mais curvas, mais estrias, mais celulite. Meu corpo era tão bonito, perfeito que eu nem sentia necessidade de fazer academia para melhorar sua forma. Mesmo assim, eu me sentia infeliz, como se fosse uma bela maldição, eu ser tudo que minha amiga sonhava, mas ser extremamente infeliz com isso.
Da primeira vez que ganhei esse peso, foi muito rápido e muito espantoso. Foi traumático, ruim, e deu medo. Mas um ano depois eu fui aos poucos ganhando o peso, pouco a pouco, até estabilizar. Vi meus quadris enchendo, meu corpo tomando mais forma, me sentindo mais bonita. Mas ao mesmo tempo fui me transformando por dentro.
Naquele ano, eu enganei uma pessoa que amava, e amei uma pessoa que me enganava. E, desesperada, para me livrar da dor de ter vivido uma grande mentira, eu me envolvi com você. E esse foi o meu maior erro.
Ao invés de ter me deixado recuperar, eu comecei, desde a mentira ser escancarada, a sofrer um processo de adoecimento. Eu me intoxiquei da positividade e da felicidade, que ignorei todos os sinais negativos, até que uma hora, tivesse engolido veneno suficiente. Nos próximos meses, mesmo sem me envenenar, o meu sangue ficava preto, e comecei a ir ao hospital. E esses meses foram os piores.
Pela primeira vez na vida me entristeci tanto, que nem via sentido na vida. Parei de sentir o gosto da profissão que eu tanto amava, perdi o movimento das pernas que me levavam a qualquer lugar, e meu ouvido perdeu a capacidade de, quando ouvia a música que eu colocava, fazer meu cérebro dançar em cenários e possibilidades e histórias inventadas que nunca se concretizariam, mas que são legais de sonhar.
E os sonhos, os sonhos desapareceram e quando eu dormia na cama hospitalar, só via pesadelos sem fim e um futuro horrível. Nada parecia ser suficiente. Nada parecia ser bom. Tudo era cinza e preto. O mundo era escuro, sem cor.
Acho que só a alguns dias, comecei a me curar. Claro que os remédios já entraram na minha receita a 2 meses atrás, mas eu decidi, que não era aquilo. Eu sabia que tinha algum remédio que me fazia mal, mesmo que prometesse o bem. Então, eu resolvi focar na fisioterapia, para meus membros, o remédio para minha cabeça, e um tratamento prático torturante a cada dia.
Estava tão focada no tratamento que só ontem, percebi que ele estava fazendo efeito. Apesar de parecer sem saída, a realização foi maluca. Quando entrei no ônibus, como naquele ano, antes de amar a pessoa errada, e coloquei uma música: eu estava ouvindo as histórias e narrativas que meus sonhos lúcidos iam me contando, respirando calmamente, e até, talvez, mais feliz.
E hoje, dentro do ônibus, voltando pela rua que demos nosso primeiro beijo, no verão desse ano, eu me sinto mais livre e mais segura de mim. Eu abri o livro que comprei naquela rua e li contos de fadas escritos por mulheres. E por incrível que pareça, a forma como as mulheres eram, agora, protagonistas das narrativas, e que superavam os obstáculos que eram colocados em suas narrativas, me fez sentir segura de mim o suficiente para entender: eu estou me sentindo feliz de novo.
Como eu estava ano passado, como eu estava antes de todo esse redemoinho de acontecimentos, depois de todas as palavras jogadas fora, e a chuva leve daquele dia, as suas lágrimas, dignas de filme, dignas de um crocodilo.
Agora, eu tomei controle da minha narrativa de novo. Eu me recuperei. Agora, eu estou tranquila que, voltando a rua de casa, eu suspirei, feliz. Pela primeira vez em muito tempo, eu consegui me amar e sentir feliz comigo mesma. Pela primeira vez em algumas semanas, saí sozinha, me permiti me amar, me permiti cuidar de mim.
E isso é como eu cresci, e talvez, como eu, me amando mesmo imperfeita, me permito ser feliz
Talvez ter passado na sua rua hoje tenha significado mais pra você do que para mim. Eu consegui me libertar de você, finalmente. E agora, posso continuar vendo a luz e as cores da minha vida. E eu amo isso.
Comecei de novo, como no dia 9 de agosto, como no dia 9 de janeiro em 2024, como o dia 9 de abril que, em algum ano, significará mais uma conquista. O passado foi deixado para trás, quero recomeçar todos os aspectos da minha vida.
Consegui me desapegar da mesquinheza de cobrar o impossível. Agora, leve e solta, percebi. Eu vou conseguir alcançar mais, sem essa pressão. Se eu estiver feliz de verdade, o que importa é a risada que ele me arrancará, em uma sala de um apartamento qualquer, que um dia chamaremos de nosso.
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